Música nos conventos femininos do Norte de Itália no século XVII.
Os mosteiros e conventos femininos foram, durante toda a Idade Moderna, grandes centros culturais e artísticos. As monjas, originárias, na sua grande maioria, das famílias mais nobres e poderosas, encontravam na arte não só uma forma privilegiada do culto divino e da expressão da sua devoção, como, e talvez sobretudo, um alívio e refúgio das penas de uma reclusão frequentemente forçada, que as afastava para sempre do convívio familiar e social. A sua sensibilidade, exacerbada pelas leituras devocionais típicas do Barroco, místicas e arrebatadas, exprimia-se em obras de carácter predominantemente meditativo, contemplativo ou plangente, favorecendo uma linguagem evocativa dos sentimentos mais íntimos e delicados, e reflectindo uma relação predominantemente emocional e individual com a esfera do sagrado. O início do século XVII testemunhou aquela que foi talvez a maior revolução na História da Música. A descoberta da monodia acompanhada e a invenção da ópera estenderam rapidamente a sua influência à música sacra, sobretudo no norte de Itália. A polifonia nunca foi totalmente abandonada, mas o novo estilo – ou seconda pratica impôs-se como gosto dominante, ao permitir uma abordagem livre, pessoal, francamente emocional e expressiva dos textos litúrgicos ou devocionais. O meio predominante era uma voz a solo com acompanhamento do baixo contínuo (confiado a um instrumento harmónico), mas a combinação de duas vozes agudas permitia uma maior flexibilidade e variedade de texturas, ora imitativas ora declamativas, bem como a exploração de sonoridades que combinavam a elevação angelical com uma nem sempre discreta voluptuosidade, sobretudo nas poesias mais afectadas pela ardência emocional barroca. Este novo estilo, substancialmente mais livre das rígidas regras do contraponto, era assim mais acessível e fácil de dominar por músicos amadores – ou que haviam tido uma formação na área da composição menos metódica, como era frequentemente o caso das mulheres, normalmente mais na sua educação musical orientadas para a execução, sobretudo no canto e nos instrumentos de tecla. No Norte de Itália, em cidades como Milão, Bolonha, Bréscia e Veneza, a partir de finais do século XVI começam a fazer-se notar várias freiras que se distinguem, aos olhos dos seus contemporâneos, já não só enquanto intérpretes virtuosas mas também como compositoras. Iniciaram a sua formação musical ainda antes do ingresso no claustro, e graças aos seus dons e capacidades vieram a desempenhar funções directivas nos seus mosteiros, não só musicais – como directoras de coro ou mestras de capela – mas frequentemente também na hierarquia da comunidade, como madres ou mestras. As mais distintas foram genuinamente admiradas pelos seus colegas masculinos, que lhes teceram publicamente os seus louvores, lhes dedicaram composições, e copiaram (ou plagiaram) as suas obras. Várias de entre elas, com permissão, mas frequentemente também com o incentivo da hierarquia eclesiástica ou de patronos da nobreza local, publicaram as suas composições. O fenómeno da edição musical, que então florescia no norte de Itália, não só permitiu a circulação das suas obras por largas áreas geográficas, atingindo mesmo o norte da Europa – ao contrário das cópias manuscritas, que dificilmente saíam das comunidades, e que acabariam por ser esquecidas e destruídas pelas vicissitudes da História – mas sobretudo o reconhecimento dos seus talentos musicais únicos. A actual redescoberta e valorização deste repertório de elevado valor estético, permite ainda restituir e reconhecer a identidade e o contributo das mulheres na construção da cultura do período Moderno e, consequentemente, da sociedade contemporânea.
— Fernando Miguel Jalôto —
26 outubro
Igreja do Convento de Santa Clara do Funchal
Domingo, 18H00
Ludovice Ensemble
Eduarda Melo, Raquel Mendes, sopranos
Sofia Diniz, viola da gamba
Fernando Miguel Jalôto, órgão e direção
Girolamo Frescobaldi (1583-1643)
¬ Toccata Terza(Toccate e partite d’intavolatura, Libro primo, 1615/1628/1637)
Anónimo (Itália, séc. XVI/XVII)
¬ «Madre non mi far monaca»(Canzonette e madrigaletti spirituali à 2. e 3 voci, d’autori diversi. Libro VIII, 1610)
Girolamo Frescobaldi
¬ Partite sopra la Monica (1 & 2) (Toccate e partite [...] Libro primo)
Caterina Assandra (c.1590-c.1620?)
¬ «O dulcis amor Iesu» a due canti e bassi e organo (Mottetti a due e a tre voci col basso continuo [...] opera seconda, 1609)
Girolamo Frescobaldi
¬ Partite sopra la Monica (3 & 4) (Toccate e partite [...] Libro primo)
Chiara Margarita Cozzolani (1602-c.1677)
¬ «O quam bonus est» a due 2 soprani e organo («si lodano le piaghe di Christo, & le mammelle della Madonna»)(I Salmi a otto voci concertati, Opera Terza di donna Chiara Margarita Cozzolari, 1650)
Anónimo (França, séc. XVI)
¬ «Une jeune fillette» (Le recueil des plus belles et excellentes chansons en forme de voix de ville [...] par Jehan Chardavoine, 1576)
Claudia Francesca Rusca (1593-1676)
¬ Canzon seconda a 4 (Sacri concerti a una, due, tre, quattro, e cinque voci, con salmi, e canzoni francesi à 4 [...], 1630)
Lucretia Orsina Vizana (1590-1662)
¬ «Omnes gentes cantate Domino» a due soprani, ò tenori (Componimenti musicali de motteti concertati a una, due, tre e quattro voci e basso continuo […], 1623)
Girolamo Frescobaldi
¬ Partite sopra la Monica (5 & 6) (Toccate e partite [...] Libro primo)
Anónimo (França, séc. XVI)
¬ «Un soir après complie» (Le recueil des plus belles et excellentes [...])
Isabella Leonarda (1620-1704)
¬ «Salve o preclara Deipara» a canto solo (Mottetti a voce sola e basso continuo, 1695)
William Young (ca.1625–1662)
¬ [Divisions «sopra la Monica»] (Ms. Goëss, Schloss Ebenthal / Ms. Durh.Ms.Mus.D.10, Durham Cathedral Library)
Chiara Margarita Cozzolani
¬ «Quis mihi det calicem bibere Domini» a voce sola (Scherzi di sacra melodia a voce sola [...], 1648)
Anónimo (França, séc. XVII/XVIII)
¬ «Une jeune pucelle» (Grande Bible des Noëls [...], 1699 / Noëls ou cantiques nouveaux [...], 1741)
Girolamo Frescobaldi
¬ Partite sopra la Monica (7 & 8) (Toccate e partite […] Libro primo)
Lucretia Orsina Vizana
¬ «Ornaverunt faciem templi» a due soprani, ò tenori (Componimenti musicali...)
Soeur Cécile
¬ Courante [sic] [Sarabande avec doubles] de Soeur Cécile (Mary & Elizabeth Rope manuscript, Newberry Library, Chicago)
Anónimo (França, séc. XVII)
¬ «Bienheureuse est une âme» (La pieuse alouëtte avec son tirelire. Le petit cors, & plumes de nótre alouëtte, sont chansons spirituëlles [...]. Valenciennes, 1619)
Isabella Leonarda
¬ «Bonum est confiteri Domino» a due canti, ò tenori (Mottetti a una, due, tre e quattro voci e alcuni con due violini, Opera VIII. Bolonha, 1677)
Girolamo Frescobaldi
¬ Partite sopra la Monica (9 & 10) (Toccate e partite [...] Libro primo)
Claudia Francesca Rusca
¬ «Ego dormio» a due soprani o tenori e organo (Sacri concerti [...])
Girolamo Frescobaldi
¬ Partite sopra la Monica (11) (Toccate e partite [...] Libro primo)
Anónimo / Ludwig Helmbold (1532-1598)
¬ «Von Gott will ich nicht laßen» (Christliche und tröstliche Tischgesang [...], 1572)