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D 04 1Quarta-feira, 22 de Outubro, 21h30 
Recolhimento do Bom Jesus 


João Paulo Janeiro: órgão 
Paula Erra: recitação 


Um programa que procura conjugar a glosa musical com a da literatura pode ser por um lado desafiante e fértil, e por outro, difícil de articular no contexto de um concerto, particularmente se se trata de um recital de órgão solo. Porém, considerando a preparação de um programa dedicado ao repertório mais antigo para órgão, especialmente no contexto português e ibérico, os cruzamentos entre a arte de fazer música e a glosa literária que podemos encontrar são da mais diversa ordem. Desde a apropriação do repertório vocal por parte dos tangedores de órgão, que se verifica nas colectâneas de música para tecla em que as intabulações de peças vocais predominam de modo esmagador, passando pelo duplo papel de poeta e músico que algumas figuras do humanismo ibérico souberam assumir, como Juan del Encina, Gil Vicente, Damião de Góis, entre outros. Assim, na tentativa de refletir um pouco esta dualidade criativa, proponho um programa de concerto em que a música e a «gaia ciência» de alguns autores, ou seja a capacidade técnica e a liberdade criativa na literatura, se desdobrem mutuamente, paralelas, com temáticas relacionadas ou não, abrindo espaço para o diálogo entre os intérpretes do órgão e dos textos que são recitados. Tanto a parte musical como a literária estão confinadas aos séculos quinze e dezasseis. Nelas se propõe diferentes géneros e formas na tentativa de ilustrar alguns exemplos significativos das duas disciplinas, remetendo pontualmente vezes para momentos relevantes da história pátria.

Iniciamos com um texto de Juan del Encina que procura definir competências entre criador e intérprete, separando desde logo as águas, na linha boeciana - polémica que continuaria para além do século dezasseis com diferentes argumentos e pretextos - e em paralelo o hino vocal a São Bernardo Exultat celi curia. As crónicas de Santa Cruz das quais se extraiu o texto intitulado Dom Affonso e o Cardeal de Roma remetem para a origem da nacionalidade e retratam o rei fundador como alguém bravo e irreverente mas cuidador dos destinos de um país que então fundou. A emparelhar com este texto, uma intabulação para órgão de uma obra vocal atribuída a Guillaume Dufay La Portugaler que se encontra na mais famosa colectânea de música de tecla do século quinze o Buxheimer Orgelbuch.

Do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende publicado em Lisboa no ano de 1516, extraímos a famosa cantiga de Jorge Roiz de Castelo-Branco, mais recentemente difundida pela fadista Amália Rodrigues com música de Alain Oulman, mas que neste recital faz par com outra intabulação extraída da mais antiga colectânea impressa de música ibérica para tecla de Gonçalo de Baena. A peça vocal, o motete Clamabat autem mulier de Pedro de Escobar, foi difundida em várias colectâneas de música para tecla e para instrumentos de corda beliscada. De Dom Manuel de Portugal, Conde de Vimioso, sabemos que escreveu sobretudo poesia mística, a quase totalidade em língua castelhana, mas também um Tratado da Oração em português. Nobre envolvido na defesa dos ideais pátrios, segundo alguns autores, uma espécie de Thomas More português, é contemporâneo dos Carreira, família de músicos famosa, mestres de capela e autores de música para tecla que marcaram decisivamente o desenvolvimento formal do Tento e das suas técnicas de execução. O Soneto de Dom Manuel é dedicado à memória de outro poeta importante no universo literário lusitano: Sá de Miranda.

No dia 19 de Abril de 1506 dá-se em Lisboa um acontecimento sinistro, a matança dos Judeus e Cristãos -Novos. Damião de Góis descreve-o de um modo bastante detalhado na sua crónica real. Apesar de não ser única, este acontecimento foi decisivo no abandono do país da maior parte da comunidade judaica, com implicações no desenrolar da própria história nacional. Em paralelo com este texto, é interpretado um Tento do 4.º Tom de Heliodoro de Paiva. A concluir o programa um excerto do que é considerado o co-fundador do teatro ibérico, Gil Vicente em parceria com Juan del Encina. O excerto é uma fala da Alma do Auto da Alma, que curiosamente inicia de modo idêntico ao Cântico Negro de José Régio, mas que aqui faz o seu ato penitencial pedindo auxílio após confrontação da sua natureza mista, divina e errante, ou emulação das ideias de Erasmus e da Igreja Romana. As Differencias de Antonio de Cabezón são um exemplo extraordinário de uma prática muito apreciada de compor variações sobre as canções e melodias em voga na época.

João Paulo Janeiro


Juan del Encina (1469-1529) 
De la diferencia que hay entre poeta y trobador 
(Cancionero de toda las obras, 1496) 

Anónimo
Hino a São Bernardo Exultat celi curia
(Manuscrito Musical do Convento de Arouca, séc. XV)

Anónimo
Dom Afonso e o Cardeal de Roma
(Crónicas Breves de Santa Cruz, séc. XV)

Anónimo
Portugaler
(Das Buxheimer Orgelbuch, M. Mus. 3725 da Biblioteca Estatal de Munique)

Jorge Roiz de Castelo-Branco (14??-1515)
Partindo-se
(Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, Lisboa, 1516)

Pero do Porto [Pedro de Escobar] (1465-1535)
Clamabat autem mulier
(Gonçalo de Baena, Arte de Tanger, 1520)

D. Manuel de Portugal (1516-1606)
Soneto em memória de Sá de Miranda
(Obras de Don Manoel de Portugal, 1605)

António Carreira (ca.1525/30-ca.1589/97)
Canção
(M. Mus. 242 da Biblioteca Universidade Coimbra)

Damião de Góis (1502-1574)
O Pogrom de Lisboa de 1509
(Crónica do Felicissimo Rei Dom Manuel, 1566-67)

Heliodoro de Paiva (1502-1552)
Tento do 4.º Tom
(M. Mus. 242 Biblioteca da Universidade de Coimbra)

Gil Vicente (1465-1536?)
Auto da Alma (1518) (excerto / excerpt)

Antonio de Cabezón (1510-1566)
Diferencias sobre la Gallarda Milaneza

Um programa que procura conjugar a glosa musical com a da literatura pode ser por um lado desafiante e fértil, e por outro, difícil de articular no contexto de um concerto, particularmente se se trata de um recital de órgão solo. Porém, considerando a preparação de um programa dedicado ao repertório mais antigo para órgão, especialmente no contexto português e ibérico, os cruzamentos entre a arte de fazer música e a glosa literária que podemos encontrar são da mais diversa ordem. Desde a apropriação do repertório vocal por parte dos tangedores de órgão, que se verifica nas colectâneas de música para tecla em que as intabulações de peças vocais predominam de modo esmagador, passando pelo duplo papel de poeta e músico que algumas figuras do humanismo ibérico souberam assumir, como Juan del Encina, Gil Vicente, Damião de Góis, entre outros. Assim, na tentativa de refletir um pouco esta dualidade criativa, proponho um programa de concerto em que a música e a «gaia ciência» de alguns autores, ou seja a capacidade técnica e a liberdade criativa na literatura, se desdobrem mutuamente, paralelas, com temáticas relacionadas ou não, abrindo espaço para o diálogo entre os intérpretes do órgão e dos textos que são recitados. Tanto a parte musical como a literária estão confinadas aos séculos quinze e dezasseis. Nelas se propõe diferentes géneros e formas na tentativa de ilustrar alguns exemplos significativos das duas disciplinas, remetendo pontualmente vezes para momentos relevantes da história pátria.

Iniciamos com um texto de Juan del Encina que procura definir competências entre criador e intérprete, separando desde logo as águas, na linha boeciana - polémica que continuaria para além do século dezasseis com diferentes argumentos e pretextos - e em paralelo o hino vocal a São Bernardo Exultat celi curia. As crónicas de Santa Cruz das quais se extraiu o texto intitulado Dom Affonso e o Cardeal de Roma remetem para a origem da nacionalidade e retratam o rei fundador como alguém bravo e irreverente mas cuidador dos destinos de um país que então fundou. A emparelhar com este texto, uma intabulação para órgão de uma obra vocal atribuída a Guillaume Dufay La Portugaler que se encontra na mais famosa colectânea de música de tecla do século quinze o Buxheimer Orgelbuch.

Do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende publicado em Lisboa no ano de 1516, extraímos a famosa cantiga de Jorge Roiz de Castelo-Branco, mais recentemente difundida pela fadista Amália Rodrigues com música de Alain Oulman, mas que neste recital faz par com outra intabulação extraída da mais antiga colectânea impressa de música ibérica para tecla de Gonçalo de Baena. A peça vocal, o motete Clamabat autem mulier de Pedro de Escobar, foi difundida em várias colectâneas de música para tecla e para instrumentos de corda beliscada. De Dom Manuel de Portugal, Conde de Vimioso, sabemos que escreveu sobretudo poesia mística, a quase totalidade em língua castelhana, mas também um Tratado da Oração em português. Nobre envolvido na defesa dos ideais pátrios, segundo alguns autores, uma espécie de Thomas More português, é contemporâneo dos Carreira, família de músicos famosa, mestres de capela e autores de música para tecla que marcaram decisivamente o desenvolvimento formal do Tento e das suas técnicas de execução. O Soneto de Dom Manuel é dedicado à memória de outro poeta importante no universo literário lusitano: Sá de Miranda.

No dia 19 de Abril de 1506 dá-se em Lisboa um acontecimento sinistro, a matança dos Judeus e Cristãos -Novos. Damião de Góis descreve-o de um modo bastante detalhado na sua crónica real. Apesar de não ser única, este acontecimento foi decisivo no abandono do país da maior parte da comunidade judaica, com implicações no desenrolar da própria história nacional. Em paralelo com este texto, é interpretado um Tento do 4.º Tom de Heliodoro de Paiva. A concluir o programa um excerto do que é considerado o co-fundador do teatro ibérico, Gil Vicente em parceria com Juan del Encina. O excerto é uma fala da Alma do Auto da Alma, que curiosamente inicia de modo idêntico ao Cântico Negro de José Régio, mas que aqui faz o seu ato penitencial pedindo auxílio após confrontação da sua natureza mista, divina e errante, ou emulação das ideias de Erasmus e da Igreja Romana. As Differencias de Antonio de Cabezón são um exemplo extraordinário de uma prática muito apreciada de compor variações sobre as canções e melodias em voga na época.


Participantes


 

Dia 22 Foto Joao Paulo Janeiro 1João Paulo Janeiro

Intérprete de instrumentos de tecla históricos, divide a sua atividade profissional entre a investigação, concertos, gravações e a docência. Fez a sua formação em Lisboa, onde completou os estudos em cravo, órgão, clavicórdio e musicologia histórica. Dirige os agrupamentos Flores de Mvsica, Capella Joanina e Concerto Ibérico – Orquestra Barroca, com os quais tem difundido ativamente património musical de Portugal. Colaborou com grandes orquestras de Portugal e estrangeiras em concertos e gravações. Gravou diversos CD em órgãos e noutros instrumentos de tecla históricos do Museu da Música de Lisboa. Gravou vários CD e programas para a rádio e canais de televisão dedicados à música portuguesa. Responsável pelas edições críticas das Sonatas e Duetos de João Baptista Avondano e pelo projeto editorial das obras completas de Francisco António de Almeida na MAACedita, no âmbito do qual concluiu as partituras da Grande Missa em Fá e do Te Deum. Prepara as edições da primeira ópera portuguesa. La Pazienza di Socrate e da abertura das vésperas Domine ad Adjuvandum me Festina, para solistas coro e orquestra. Concebeu os projetos e dirige os festivais ‘West Coast Early Music Festival’, Ciclo de Teclas Fim da Tarde’, ‘Série Ibérica de Música Antiga’ e ‘Jornadas de Órgão do Alentejo’. Realizou o Inventário de Órgãos Históricos do Alentejo para a Direção Regional da Cultura e orientou processos de restauro naquela região. Concebeu e dirige os Cursos Internacionais de Música Antiga e os Concursos Internacionais de Jovens Intérpretes de Música Antiga. Lecciona órgão, cravo, música de câmara e baixo contínuo e as classes de interpretação histórica na ESART-IPCB e na EMNSC. Tem realizado diversas atividades pedagógicas e concertos em Itália e dirigido masterclasses de cravo, baixo contínuo e orquestra barroca. É presidente da MAAC, membro fundador do CESEM (FCSH-UNL) e da Sociedade Portuguesa de Investigação em Música (SPIM). Tem apresentado comunicações e publicado artigos na área da organologia e música barroca portuguesa. Prepara o doutoramento em Ciências Musicais com um trabalho sobre a prática do baixo contínuo em Portugal no século XVII.

Dia 22 Foto Paula ErraPaula Erra

Atriz, formadora de teatro e arte-terapeuta, nasceu no Funchal em 1973. Iniciou os seus estudos de Teatro, em 1989, no Teatro Experimental do Funchal. Concluiu o I, II, e III Cursos de Diretores/Encenadores e Atores, promovidos pelo sector de Teatro do Inatel. Nos espetáculos em que participou, além de atriz, tem feito assistência de encenação, dramaturgia e direção vocal de atores. É licenciada em Ciências da Educação e pós-graduada em Arte-Terapia. Fundou o Grupo de Teatro universitário da Universidade da Madeira (posteriormente denominado Laboratório Teatral Académico). Criou e dirigiu a atividade Educação Dramática no Estabelecimento Prisional do Funchal e no Centro de Tratamento da Toxicodependência (Centro de Saúde de Santiago). Foi vice-presidente da Associação Artística de Educação Pela Arte na Madeira, onde deu formação de Exploração Criativa, Voz e Interpretação, e fez direção de atores no seu núcleo artístico. Escreveu, com Avelina Macedo, a peça Um Outro Caminho. Criou e organizou, com Celina Pereira, o projeto de leituras interpretadas Céu&Palavras. Entre outros, trabalhou com os encenadores Eduardo Luiz, Mário Feliciano, Fernando Augusto e Carlos Cabral. Recentemente criou, com Élvio Camacho, a Teatro Feiticeiro do Norte.


Notas ao Órgão


 

D 08Recolhimento do Bom Jesus, Funchal

Este pequeno órgão positivo foi construído em 1781 por Leandro José da Cunha (n. 1743 – m. após 1805), natural de Lisboa e um dos três construtores identificados desta família de organeiros. Leandro era filho do organeiro João da Cunha (n. 1712 – m. 1762), igualmente natural de Lisboa, que construiu o órgão da igreja de Nossa Senhora da Luz, de Ponta do Sol.

O órgão representa um tipo de instrumento muito característico para o conceito da organaria portuguesa da primeira metade do século XVIII. O facto de o instrumento não ter possuído – originalmente e à semelhança com muitos outros positivos daquela época – um registo base de 8’ (q. d. de 12 palmos) mas apenas de 6 palmos, parece indicar uma prática musical que contava com o reforço da região grave por meio de um outro instrumento.

Manual (C, D, E, F, G, A-d’’’)
Flautado de 6 tapado (4’)
Quinzena (2’)
Dezanovena (1 1/3’)
22ª e 26ª
Sesquialtera II ( )