Sábado, 28 de outubro, 21h30
Igreja de Nossa Senhora da Luz
Órgão e literatura
Jan Willem Jansen, órgão
António Plácido, voz
Órgão e literatura
A relação entre a música e a palavra perde-se no tempo. Os primeiros exemplos de notação musical na civilização cristã referem-se ao canto e submetem claramente a melodia ao texto. Mas muito antes da era cristã, a música estava já presente em muitos momentos dominados pela palavra. A própria poesia, mesmo quando não cantada, era frequentemente sublinhada através da intervenção de um instrumento musical. Este programa revisita essa relação entre a palavra e a música, contrapondo textos de autores portugueses a obras de órgão originárias de diferentes regiões da Europa. A componente literária deste programa inclui poemas de Camões e Fernando Pessoa, mas está centrada em textos do poeta e teólogo madeirense José Tolentino de Mendonça, uma das vozes da poesia portuguesa contemporânea.
Pelo contrário, a principal parte do programa musical é constituída por algumas das primeiras peças escritas para órgão. Fragmentos, litanias, canções e danças sucedem-se numa linguagem surpreendentemente simples que, paradoxalmente, faz empalidecer obras mais próximas de nós, como aquelas de Pachelbel, Reger ou Messiaen...
A tablatura coligida pelo monge Adam Ileborg em 1448 contém cinco prelúdios (Preambula) e três peças (chamadas Mensurae) sobre o tenor «Frowe al myn hoffen an dyr lyed». Nos prelúdios, curtos, compactos, mas de uma extraordinária amplitude, encontram-se já elementos do que seria mais tarde o stylus phantasticus. As indicações voluntaria e per modum praeambuli no fim das Mensurae podem ser interpretadas como «à vontade» ou ad libitum e anunciam já os finais ornamentados das grandes fantasias dos corais norte-alemães.
O chamado Robertsbridge Codex, conservado na British Library, é um volumoso registo proveniente da Abadia de Robertsbridge, no Sussex, datado de 1320-1350. No fim deste volume encontram-se duas páginas de música que, seguramente, fariam parte de um conjunto mais vasto. Duas estampies completas e dois motetes glosados foram conservados. A estampie é uma forma medieval que compreende vários couplets todos terminando com o mesmo refrão (uma espécie de rondó). Os dois motetes ornamentados são baseados em originais de Philippe de Vitry (1291-1361), contidos no célebre Roman de Fauvel. Este manuscrito parece ser de origem francesa ou italiana e é, provavelmente, o mais antigo exemplo conhecido de música original para teclado.
Através da música de Conrad Paumann ou da conservada no Buxheimer Orgelbuch podemo-nos aperceber de uma evolução na técnica do teclado. A escrita musical torna-se mais ritmada e virtuosística e mostra um outro equilíbrio na relação entre a harmonia e os melismas melódicos. As peças de autores anónimos ingleses apresentadas neste programa têm em comum a presença do basso ostinato – uma linha ou motivo musical no baixo que se repete sem cessar e sobre o qual o organista desenvolve melodias variadas e vivas. Esta forma musical chamar-se-á mais tarde passacalha ou chacona.
Poder-se-ão apreciar as diferenças e semelhanças entre as abordagens de temas recorrentes na história da humanidade – como Deus, o amor ou a morte – presentes nestes textos sem música e nestas músicas sem texto apresentadas ao longo deste programa. Será talvez a intemporalidade daqueles temas que parece libertar a arte das barreiras do tempo, permitindo reduzir magicamente a distância aparentemente imensa que separa a poesia contemporânea da música do século XIV.
Anónimo
(Tablatura de Adam Ileborg, 1448)
¬ Preambulum super d, a, f et g
¬ Mensura trium notarum super illum tenorum Frowe al myn hoffer an dyr lyed
¬ Praeambulum in C et potesti variari in d, f, g, a
José Tolentino de Mendonça (1965)
¬ A infância de Herberto Helder
Anónimo
(Inglaterra, séc. XVI)
¬ My Lady Carey’s dompe
¬ The short mesure off my Lady Wynkfylds rownde
¬ Upon la mi re
José Tolentino de Mendonça
¬ Da verdade do amor (Baldios)
Anónimo
(Fundamentum organisandi magistri conradi Paumanns, 1452)
¬ Elend du hast umfangen mich
Anónimo
(Buxheimer Orgelbuch, c.1460-70)
¬ Adieu mes tres belle
Fernando Pessoa (1888-1935)
¬ Presságio
Anónimo
(Robertsbridge Codex, c.1330)
¬ Estampie
Anónimo
(Colectânea de Ludolf Wilkin de Winsen, 1431)
¬ Wol up ghesellen yst an der tyet IV or notarum
Fernando Pessoa
¬ O guardador de rebanhos
Anónimo
(editado por Claude Gervaise, c. 1550)
¬ Danceries
› Branle de Bourgogne
› Branle de Poitou
› Gaillarde
› Branle gay
› Branle de Champagne
José Tolentino de Mendonça
¬ Murmúrios do mar
Pablo Bruna (1611-1679)
¬ Tiento de medio registro de mano derecha de 1er tono
Fernando Pessoa
¬ O menino de sua mãe
Tarquinio Merula (c. 1590-1665)
¬ Cromatico ovvero capriccio primo tuono
Luís de Camões (c. 1524/5-1580)
¬ Alma minha gentil que te partiste (Sonetos)
Johannes Ockeghem (c. 1410-1497)
¬ Miserere / Mort, tu as navré ton dart
(lamento sobre a morte de Gilles Binchois, 1460/61)
José Tolentino de Mendonça
¬ Final
Participantes
Após os seus estudos com Jan Warmick, Willem Mesdag e Wim van Beek, obtém em 1977 o diploma de solista do Conservatório Real de Haia aperfeiçoando-se posteriormente em cravo com Ton Koopman em Amsterdão. Prossegue então os seus estudos em França com Xavier Darasse, de quem virá a ser colaborador pedagógico no Conservatório de Toulouse, onde ensina atualmente órgão e cravo. É, igualmente, co-fundador do Departamento de Música Antiga daquele estabelecimento e assegura, ao lado de Michel Bouvard, a responsabilidade do novo departamento superior «Orgues et Claviers». Co-fundador, em 1996, com Michel Bouvard, do Festival Internacional festival «Toulouse les Orgues», Jan Willem Jansen foi durante largos anos diretor artístico daquele evento. Por ocasião da edição de 1997, gravou para a coleção Tempéraments a obra integral de órgão de Nikolaus Bruhns, completada com cantatas do mesmo compositor, interpretadas pelo Parlement de Musique sob a direção de Martin Gester. Em 1998, ele gravou um CD dedicado a Joan Cabanilles, no órgão histórico da Igreja de San Pablo em Saragoça. A sua atividade de intérprete leva-o a tocar com os mais importantes ensembles barrocos europeus, nomeadamente La Chapelle Royale de Paris, o Collegium Vocale de Gand, Hesperion XX, Les Sacqueboutiers de Toulouse e o Ensemble Baroque de Limoges. É também titular do órgão Ahrend do Musée des Augustins assim como do instrumento histórico da Basílica Notre-Dame de la Daurade em Toulouse. |
Elemento fundador do Teatro Experimental do Funchal, António Plácido tem desenvolvido uma carreira como ator de teatro, com algumas experiências de encenação, quer no TEF, quer no grupo de teatro A Lanterna, de Machico. Tem-se apresentado também como «intérprete da palavra» (diseur), com vários espetáculos de poesia ao longo dos anos, quer coletivos, quer individuais. Nesta condição, integra, desde 2013, dois grupos musicais direcionados para a divulgação poética: o Vértice, que se dedica a musicar e interpretar poesia madeirense de todos os tempos com espetáculos no Funchal e em vários pontos da Madeira, e Apanhados com a Boca na Palavra, que interpreta poesia de novos e consagrados poetas de todo o mundo, com vários espectáculos no Funchal. Individualmente, participou, em 2017, numa homenagem a Carlos do Carmo, por convite da Associação Académica da Universidade da Madeira. |
Notas ao Órgão
Igreja da Nossa Senhora da Luz (Ponta do Sol)
Este instrumento é um órgão positivo de armário e encontra-se instalado no coro alto. O seu autor foi o organeiro João da Cunha (n. 1712 - m. 1762) que o construiu no ano de 1761, em Lisboa, conforme consta da inscrição no interior do secreto. João da Cunha, natural de Lisboa, era pai de Leandro José da Cunha (n. 1743 - m. após 1805), construtor do órgão positivo da Igreja do Recolhimento do Bom Jesus, no Funchal. Tendo sofrido algumas intervenções de menor importância, o instrumento manteve em grande parte o seu carácter original e foi restaurado em 2005-06 por Dinarte Machado que lhe restituiu o diapasão e o temperamento original, bem como o sistema primitivo da alimentação do ar.
Manual (C, D, E, F, G, A-d’’’)
Flautado tapado de 6 palmos (4’)
Quinzena (2’)
Dezanovena (1 1/3’)
Vintedozena (1’)
Sesquialtera de II