Sexta-feira, 27 de outubro, 21h30
Igreja e Recolhimento do Bom Jesus
Órgão e literatura
Jan Willem Jansen, órgão
António Plácido, voz
Órgão e literatura
A relação entre a música e a palavra perde-se no tempo. Os primeiros exemplos de notação musical na civilização cristã referem-se ao canto e submetem claramente a melodia ao texto. Mas muito antes da era cristã, a música estava já presente em muitos momentos dominados pela palavra. A própria poesia, mesmo quando não cantada, era frequentemente sublinhada através da intervenção de um instrumento musical. Este programa revisita essa relação entre a palavra e a música, contrapondo textos de autores portugueses a obras de órgão originárias de diferentes regiões da Europa. A componente literária deste programa inclui poemas de Camões e Fernando Pessoa, mas está centrada em textos do poeta e teólogo madeirense José Tolentino de Mendonça, uma das vozes da poesia portuguesa contemporânea.
Pelo contrário, a principal parte do programa musical é constituída por algumas das primeiras peças escritas para órgão. Fragmentos, litanias, canções e danças sucedem-se numa linguagem surpreendentemente simples que, paradoxalmente, faz empalidecer obras mais próximas de nós, como aquelas de Pachelbel, Reger ou Messiaen...
A tablatura coligida pelo monge Adam Ileborg em 1448 contém cinco prelúdios (Preambula) e três peças (chamadas Mensurae) sobre o tenor «Frowe al myn hoffen an dyr lyed». Nos prelúdios, curtos, compactos, mas de uma extraordinária amplitude, encontram-se já elementos do que seria mais tarde o stylus phantasticus. As indicações voluntaria e per modum praeambuli no fim das Mensurae podem ser interpretadas como «à vontade» ou ad libitum e anunciam já os finais ornamentados das grandes fantasias dos corais norte-alemães.
O chamado Robertsbridge Codex, conservado na British Library, é um volumoso registo proveniente da Abadia de Robertsbridge, no Sussex, datado de 1320-1350. No fim deste volume encontram-se duas páginas de música que, seguramente, fariam parte de um conjunto mais vasto. Duas estampies completas e dois motetes glosados foram conservados. A estampie é uma forma medieval que compreende vários couplets todos terminando com o mesmo refrão (uma espécie de rondó). Os dois motetes ornamentados são baseados em originais de Philippe de Vitry (1291-1361), contidos no célebre Roman de Fauvel. Este manuscrito parece ser de origem francesa ou italiana e é, provavelmente, o mais antigo exemplo conhecido de música original para teclado.
Através da música de Conrad Paumann ou da conservada no Buxheimer Orgelbuch podemo-nos aperceber de uma evolução na técnica do teclado. A escrita musical torna-se mais ritmada e virtuosística e mostra um outro equilíbrio na relação entre a harmonia e os melismas melódicos. As peças de autores anónimos ingleses apresentadas neste programa têm em comum a presença do basso ostinato – uma linha ou motivo musical no baixo que se repete sem cessar e sobre o qual o organista desenvolve melodias variadas e vivas. Esta forma musical chamar-se-á mais tarde passacalha ou chacona.
Poder-se-ão apreciar as diferenças e semelhanças entre as abordagens de temas recorrentes na história da humanidade – como Deus, o amor ou a morte – presentes nestes textos sem música e nestas músicas sem texto apresentadas ao longo deste programa. Será talvez a intemporalidade daqueles temas que parece libertar a arte das barreiras do tempo, permitindo reduzir magicamente a distância aparentemente imensa que separa a poesia contemporânea da música do século XIV.
Anónimo
(Tablatura de Adam Ileborg, 1448)
¬ Preambulum super d, a, f et g
¬ Mensura trium notarum super illum tenorum Frowe al myn hoffer an dyr lyed
¬ Praeambulum in C et potesti variari in d, f, g, a
José Tolentino de Mendonça (1965)
¬ A infância de Herberto Helder
Anónimo
(Inglaterra, séc. XVI)
¬ My Lady Carey’s dompe
¬ The short mesure off my Lady Wynkfylds rownde
¬ Upon la mi re
José Tolentino de Mendonça
¬ Da verdade do amor (Baldios)
Anónimo
(Fundamentum organisandi magistri conradi Paumanns, 1452)
¬ Elend du hast umfangen mich
Anónimo
(Buxheimer Orgelbuch, c.1460-70)
¬ Adieu mes tres belle
Fernando Pessoa (1888-1935)
¬ Presságio
Anónimo
(Robertsbridge Codex, c.1330)
¬ Estampie
Anónimo
(Colectânea de Ludolf Wilkin de Winsen, 1431)
¬ Wol up ghesellen yst an der tyet IV or notarum
Fernando Pessoa
¬ O guardador de rebanhos
Anónimo
(editado por Claude Gervaise, c. 1550)
¬ Danceries
› Branle de Bourgogne
› Branle de Poitou
› Gaillarde
› Branle gay
› Branle de Champagne
José Tolentino de Mendonça
¬ Murmúrios do mar
Pablo Bruna (1611-1679)
¬ Tiento de medio registro de mano derecha de 1er tono
Fernando Pessoa
¬ O menino de sua mãe
Tarquinio Merula (c. 1590-1665)
¬ Cromatico ovvero capriccio primo tuono
Luís de Camões (c. 1524/5-1580)
¬ Alma minha gentil que te partiste (Sonetos)
Johannes Ockeghem (c. 1410-1497)
¬ Miserere / Mort, tu as navré ton dart
(lamento sobre a morte de Gilles Binchois, 1460/61)
José Tolentino de Mendonça
¬ Final
Participantes
Jan Willem Jansen Após os seus estudos com Jan Warmick, Willem Mesdag e Wim van Beek, obtém em 1977 o diploma de solista do Conservatório Real de Haia aperfeiçoando-se posteriormente em cravo com Ton Koopman em Amsterdão. Prossegue então os seus estudos em França com Xavier Darasse, de quem virá a ser colaborador pedagógico no Conservatório de Toulouse, onde ensina atualmente órgão e cravo. É, igualmente, co-fundador do Departamento de Música Antiga daquele estabelecimento e assegura, ao lado de Michel Bouvard, a responsabilidade do novo departamento superior «Orgues et Claviers». Co-fundador, em 1996, com Michel Bouvard, do Festival Internacional festival «Toulouse les Orgues», Jan Willem Jansen foi durante largos anos diretor artístico daquele evento. Por ocasião da edição de 1997, gravou para a coleção Tempéraments a obra integral de órgão de Nikolaus Bruhns, completada com cantatas do mesmo compositor, interpretadas pelo Parlement de Musique sob a direção de Martin Gester. Em 1998, ele gravou um CD dedicado a Joan Cabanilles, no órgão histórico da Igreja de San Pablo em Saragoça. A sua atividade de intérprete leva-o a tocar com os mais importantes ensembles barrocos europeus, nomeadamente La Chapelle Royale de Paris, o Collegium Vocale de Gand, Hesperion XX, Les Sacqueboutiers de Toulouse e o Ensemble Baroque de Limoges. É também titular do órgão Ahrend do Musée des Augustins assim como do instrumento histórico da Basílica Notre-Dame de la Daurade em Toulouse. |
António Plácido Elemento fundador do Teatro Experimental do Funchal, António Plácido tem desenvolvido uma carreira como ator de teatro, com algumas experiências de encenação, quer no TEF, quer no grupo de teatro A Lanterna, de Machico. Tem-se apresentado também como «intérprete da palavra» (diseur), com vários espetáculos de poesia ao longo dos anos, quer coletivos, quer individuais. Nesta condição, integra, desde 2013, dois grupos musicais direcionados para a divulgação poética: o Vértice, que se dedica a musicar e interpretar poesia madeirense de todos os tempos com espetáculos no Funchal e em vários pontos da Madeira, e Apanhados com a Boca na Palavra, que interpreta poesia de novos e consagrados poetas de todo o mundo, com vários espectáculos no Funchal. Individualmente, participou, em 2017, numa homenagem a Carlos do Carmo, por convite da Associação Académica da Universidade da Madeira. |
Notas ao Órgão
Igreja e Recolhimento do Bom Jesus, Funchal
Este pequeno órgão positivo foi construído em 1781 por Leandro José da Cunha (n. 1743 – m. após 1805), natural de Lisboa e um dos três construtores identificados desta família de organeiros. Leandro era filho do organeiro João da Cunha (n. 1712 – m. 1762), igualmente natural de Lisboa, que construiu o órgão da igreja de Nossa Senhora da Luz, de Ponta do Sol.
O órgão representa um tipo de instrumento muito característico para o conceito da organaria portuguesa da primeira metade do século XVIII. O facto de o instrumento não ter possuído – originalmente e à semelhança com muitos outros positivos daquela época – um registo base de 8’ (q. d. de 12 palmos) mas apenas de 6 palmos, parece indicar uma prática musical que contava com o reforço da região grave por meio de um outro instrumento.
Manual (C, D, E, F, G, A-d’’’)
Flautado de 6 tapado (4’)
Quinzena (2’)
Dezanovena (1 1/3’)
22ª e 26ª
Sesquialtera II (c#´-d´´´)