Sábado, 27 outubro, 21H30
Igreja de Nossa Senhora da Conceição (Matriz de Machico)
Gonçalo de Baena, músico de D. João III, e a Europa do seu tempo
Bruno Forst, órgão
Foi no século XVI que a música de órgão nasceu. Inicialmente limitada a modestas improvisações sobre um cantus firmus litúrgico e à execução de peças vocais sustentando (ou substituindo) as vozes, foi-se gradualmente afastando daqueles modelos para se transformar num repertório propriamente instrumental. Na Península Ibérica, a glosa desempenhou um papel importante nesse processo, criando pouco a pouco, a partir de obras pré-existentes, um estilo inovador e brilhante.
Conhecemos o repertório dos organistas ibéricos do início do século XVI, graças à Arte novamente inventada pera aprender a tanger (Lisboa, 2540) de Gonçalo de Baena, músico castelhano ao serviço do rei D. João III. Aí encontram-se, por um lado, contrapontos a duas ou três vozes sobre hinos gregorianos, (Pange Lingua, Ave maris stella ou Conditor Alme), vestígios escritos de uma prática improvisada, e, por outro, transcrições literais de obras vocais que, segundo as indicações de Baena, se podem tocar tal qual estão impressas, ou ornamentadas com pequenas glosas que dão à música um carácter mais instrumental. Esta antologia contém, de resto, toda a obra conhecida de António de Baena, compositor português cujo soberbo Agnus Dei, baseado na repetição obsessiva de um motivo de quatro notas (fá-ré-mi-ré) dá uma ideia do seu génio.
O Libro de cifra nueva, publicado em 1557 por Venegas de Henestrosa informa-nos sobre o desenvolvimento da técnica: as glosas já não são deixadas à fantasia do intérprete, mas escritas e, ao nome do autor da obra glosada, é associado o do glosador, fazendo dele uma espécie de co-autor. Para além disso, em peças como Conditor Alme de Gracia Baptista (a primeira mulher referida na história da música ibérica) sente-se a influência da glosa. Por fim, encontram-se algumas obras instrumentais que contêm uma repetição inteiramente glosada, como a Pavana de Cabezón.
É com este último que a glosa vai atingir o seu apogeu. Nas Obras de música, compiladas em 1578 pelo seu filho Hernando, as glosas têm um lugar importante. As peças vocais, muitas vezes complexas, que servem de base, não são mais do que um pretexto para criar obras originais profundamente instrumentais. O nome do autor glosado é, de resto, apenas mencionado como fonte de inspiração para uma peça cuja paternidade é inteiramente atribuída ao glosador.
A partir daí, não resta mais do que um passo para fazer com que a glosa se liberte dos modelos vocais e se torne num género independente. Esse passo será dado no final do século e dele nos dá testemunho Francisco Correa de Arauxo. Na sua Facultad Orgánica de 1626, este organista sevilhano organiza todos os seus tientos em torno de breves temas melódicos que geram a sua própria glosa num discurso fluido e insperado. Nas vésperas da grande paixão pela música italiana que irá submergir a Europa, as derradeiras luzes do repertório ibérico nascido no século XVI brilham em todo o seu esplendor...
Bruno Forst
GONÇALO DE BAENA
Arte novamente inventada pera
aprender a tanger (Lisboa 1540)
João de Badajoz (c. 1460-p.1521)
¬ Pange lingua
Firmin Caron (?-1475)
¬ Hélas que pourra devenir mon cœur
Josquin Desprez (c. 1440-1518)
In pace in idipsum
Loyset Compère (c. 1450-1518)
¬ 1º tono
Francisco de Peñalosa (c. 1470-1528)
¬ Unica es colomba mea
Anónimo
¬ Conditor alme syderum
Gonçalo de Baena (c. 1480-p.1540)
¬ Ave maris stella
Antonio de Baena (?-p.1562)
¬ Agnus dei (Missa fa-re-mi-re)
Venegas de Henestrosa
Libro de cifra nueva (Alcalá de Henares 1557)
Francisco Fernández Palero
(c. 1533-1597)
¬ Quaeremus cum pastoribus
Gracia Baptista (fl.1557?)
¬ Conditor alme siderum
Antonio de Cabezón
Obras de música (Madrid 1578)
Antonio de Cabezón (1510-1566)
¬ Pavana
¬ Ardenti mei sospiri
Francisco Correa de Arauxo
Facultad orgánica (Alcalá de Henares 1626)
Francisco Correa de Arauxo
(1584-1654)
¬ Cuarto tiento de 4º tono
¬ Medio registro de tiple de 10º tono
¬ Segundo tiento de primer tono
Participantes
Bruno Forst Bruno Forst nasceu em Troyes. Começou os seus estudos de piano e de órgão com Paule Rochais em Cognac. Mais tarde, após estudar Filosofia, entrou na classe de Francis Chapelêt no Conservatoire National de Région de Bordeaux, de onde saiu com uma medalha de ouro em 1996. Partiu em seguida para Madrid, onde trabalhou sob a orientação de Miguel del Barco. Fixou-se em Espanha, que se tornou a sua terra de eleição, dada a sua paixão pelos órgãos barrocos daquele país tão rico. Vive actualmente numa pequena aldeia da província de Soria, onde se dedica ao estudo das fontes musicais espanholas dos séculos XVI e XVII. Ali prepara as suas gravações e concertos de órgão, cravo, clavicórdio e música de câmara com que se apresenta na Europa, Estados Unidos e América Latina. Realizou uma transcrição em notação moderna da tablatura de tecla de Gonçalo de Baena, Arte novamente inventada pera aprender a tãger, impressa em Lisboa em 1540 (Dairea Ediciones, 2012) e gravou para a etiqueta Brilliant Classics diversos CDs dedicados à música ibérica para órgão. |
Notas ao Órgão
Igreja de Nossa Senhora da Conceição (Machico)
Na documentação histórica anterior ao século XX constam observações que se referem a dois instrumentos: um foi oferecido, segundo a tradição historiográfica, em 1499, à Igreja de Nossa Senhora da Conceição pelo rei D. Manuel, e um outro adquirido em 1746. No que diz respeito ao órgão manuelino podemos deduzir que ele foi colocado no arco que se abre sobre o cadeiral do lado do Evangelho da capela-mor. No século XVIII, o estado de conservação deste órgão terá deixado muito a desejar, verificando-se a aquisição do segundo instrumento em 1746. O órgão chegou à Madeira em 1752, tendo o Conselho da Fazenda contribuído, inicialmente, nas despesas da sua compra e, posteriormente, nos custos da sua instalação.
O recente restauro, da responsabilidade de Dinarte Machado, teve como objectivo principal restituir, na medida do possível, a sua constituição original, seguindo as indicações dadas pelas próprias peças durante a desmontagem. Assim, no decorrer do restauro optou-se por uma filosofia de intervenção que tivesse sempre em conta as particularidades das peças originais, desde à configuração da caixa e policromia, à reposição da registação, tubaria, folaria, e até à colocação do instrumento no seu local original - a capela-mor. Ainda em relação à composição do instrumento, reintroduziu-se o meio-registo da mão direita, de palheta, que o órgão indicava possuir originalmente e que, de certa forma, o caracteriza. O teclado original, encontrado a monte e que se conseguiu recuperar, mantém a extensão da época com Oitava curta. Ficou completada, com grande rigor, a nova tubaria de acordo com as características que os poucos tubos originais conservados evidenciavam, comparada com as próprias indicações e dimensões do someiro, que também foi minuciosamente estudado e documentado.
Não há dúvidas que se trata de um dos mais belos órgãos da Ilha da Madeira, sendo um dos instrumentos que conserva algumas das mais relevantes características da organaria do século XVII em Portugal. É de salientar ainda que o trabalho de restauro desencadeado nesta peça exigiu o estudo de muita documentação, assim como comparações com outros órgãos da época. Uma vez que tais instrumentos não existem em Portugal, teve de se recorrer a dados em outros países.
Manual (C, D, E, F, G, A-c’’’)
Flautado de 12 palmos (8’)
Flautado de 6 palmos (4’)
Flauta doce
Dozena (2 2/3’)
Voz humana (c#’-c’’’)
Quinzena (2’)
Composta de 19ª e 22ª
Sesquialtera II (c#’-c’’’)
Clarim* (c#’-c’’’)
* palhetas horizontais